O que o seu e o meu cavalo desejam?
Acredito que, antes de mais nada, eles desejem ser o que são: cavalos.
Eles nunca entenderam palavras como olimpíadas, milionário, vitória, superação. Não sabem o que significa dinheiro, propriedade, pura raça, linhagem. Conhecem isto sim (embora não verbalmente) conceitos como segurança, hierarquia, alimento, grupo. Pessoalmente, acredito também que eles entendam e sintam, uns pelos outros, lealdade, amizade, amor. E se é assim, talvez seja possível que também aprendam a gostarem da gente de uma maneira similar.
Um cavalo vivo não é um arquétipo humano: somos nós que tomamos a sua identidade emprestada para as nossas projeções. E o verdadeiro milagre é que o cavalo-criatura é, sim, capaz de se transformar em um corcel mítico sem prejudicar a si mesmo, à sua legítima essência – desde que, por nossa vez, o entendamos e respeitemos o que ele realmente é. Ele não é um sonho, um símbolo de liberdade, uma explosão de força e velocidade, beleza radiante, coragem, ousadia. Tudo isso são símbolos da mente humana. Um cavalo é um grande animal herbívoro, que evoluiu ao longo de sessenta milhões de anos para ser uma criatura nômade e gregária. A segurança do grupo que se movimenta sempre em ambientes diversos à procura de gramíneas: isto é um cavalo, isto ele deseja, isto ele precisa. O resto são necessidades humanas.
No entanto, os cavalos são generosos. Talvez não da maneira humana, conscientemente e abstraindo por conta de moral e ética - mas pela sua própria natureza. Nômades predados das estepes infinitas, eles sabem que a sobrevivência vem da união do grupo, e que esta união inclui cuidarem uns dos outros – os mais fortes dos mais fracos, os mais corajosos dos mais assustados, os líderes dos indecisos. Não há mesquinharia em seu espaço vital, pois a essência de suas vidas é se manterem em movimento em busca de alimento e segurança para todos. E, como todos os grandes herbívoros dos espaços abertos, eles têm uma sensibilidade quase telepática para reconhecerem potenciais inimigos – e portanto, com a mesma eficiência distinguem os amigos, os aliados.
Acredito que seja assim que se delineie o caminho das verdadeiras pessoas do cavalo, em todas as eras e de todas as funções: fazer-se reconhecido pelo cavalo como parte da manada – suas pernas são minhas pernas, minha vontade é a sua vontade. Velocidade, reflexos e força de um grande herbívoro de fuga; astúcia e bravura do caçador. Este não é apenas o centauro encarnado do início da civilização humana, mas também, num maravilhoso paradoxo, a garantia da subsistência da equitação neste século XXI. Hoje, quando sustentabilidade e bem-estar animal são algumas das palavras-chave em uma crise mundial de valores, tanto subjetivos quanto objetivos, a qual não parece ter data para terminar. Pois o BOM cavaleiro tornará qualquer cavalo mais forte, mais audaz, mais seguro de si, mais inteligente, do que a criatura era no início do processo. E se definirmos “felicidade” como a reunião de condições para uma vida rica em quantidade e qualidade, é possível afirmar que o cavalo doméstico respeitado, compreendido e bem equitado seja mais FELIZ do que seria se livre e entregue a si mesmo na vida natural.
Claro, para a pessoa do cavalo este não é um feito fácil nem rápido, pois o amor e a confiança dos cavalos não são de reciprocidade automática aos sentimentos humanos – tal como, por exemplo, acontece entre pessoas e cães. O amor puro e leigo de pessoas por cavalo no mais das vezes tem consequências horríveis para os cavalos, pois costuma se manifestar em cabrestos e mantas coloridos, ração em excesso, mimos diversos, tudo isso destinado ao cavalo-fantasia, ao cavalo arquetípico que vive no coração de tantos cavaleiros – mas que, sinto lhes dizer, não é o cavalo-criatura. O cavalo vivo que subjugamos e montamos não é o nosso sonho – mas, do fundo de sua alma generosa, não se importa de dividir nosso sonho com a gente durante algumas horas diárias. Desde que duas outras prerrogativas aconteçam: em primeiro lugar, que ele possa continuar sendo ele mesmo, herbívoro gregário das planícies, durante o resto do dia. E em segundo lugar, que o amor humano não seja considerado suficiente por si só, mas apenas como incentivo para que os candidatos a se tornarem pessoas do cavalo adquiram CONHECIMENTO. Pois, já se sabe, conhecimento é poder. Só com este poder, do qual vem o exemplo e a massa crítica de uma crescente onda do bem, é que seremos capazes de cuidar bem de nosso cavalos, de montá-los bem, de estimulá-los a serem mais felizes e mais saudáveis, e em contrapartida nos oferecendo a possibilidade de nos tornarmos pessoas melhor. É possível, mas não há mágica nem atalhos.
E então, o que você acha que seu cavalo deseja?
Claudia Leschonski.
TEXTO EXTRAÍDO DO BLOG CAVALOS ENTUSIASMADOS: www.leschonski.blog.terra.com.br
Dra. Claudia Leschonski : médica veterinária, treinadora de cavalos, instrutora de equitação,professora universitária. Escreve sobre equitação e manejo. Ministra clínicas periódicas.
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